Seis de novembro de 2024 poderia ser uma data comemorativa. No entanto, ano após ano, essa data não é celebrada. Foi neste dia, há exatos 20 anos, que algo inédito e devastador começou no Brasil, mais precisamente no Bairro Samambaia, em Imaruí.
Era um sábado pela manhã quando um telefonema urgente deixou um produtor de camarão intrigado. Do outro lado da linha, o funcionário da Fazenda Camaruí, pescador experiente, relatava algo que nunca havia visto em toda sua vida de contato com os crustáceos da região. Os camarões de um viveiro apresentavam um comportamento incomum e preocupante: nadavam lentamente pela superfície da água e morriam logo em seguida, nas margens dos viveiros. Ali, nascia o primeiro registro oficial da Síndrome da Mancha Branca no Brasil e em todo o Oceano Atlântico – justamente em nossa região.
A chegada do vírus foi um verdadeiro balde de água fria. Laguna, que até então se destacava como principal polo de criação de camarões marinhos no Sul e Sudeste do Brasil, viu sua promissora cadeia produtiva ruir. É fundamental relembrarmos e registrar essa história, pois, com o tempo, muitos fatos se perdem e outros acabam distorcidos.
Não faltaram rumores. Alguns diziam que o “olho gordo” dos produtores teria sido o responsável por trazer o desastre, uma visão simplista e equivocada. Na verdade, Santa Catarina foi o único estado do Brasil onde TODAS as fazendas passaram por licenciamento ambiental rigoroso, algumas com EIA-RIMA. Isso foi resultado de um programa estadual exemplar para o desenvolvimento da carcinicultura. A tese de doutorado do saudoso Prof. Elpídio Beltrame da UFSC é prova desse planejamento cuidadoso – uma leitura essencial para quem deseja compreender essa história.
Outro equívoco recorrente é a ideia de que a densidade de camarões cultivados teria sido a causa do surto. As licenças ambientais permitiam até 25 camarões por metro quadrado, e essa recomendação foi respeitada por todos, especialmente pelo LCM/UFSC, o único laboratório fornecedor de pós-larvas em operação até 2002. Os novos laboratórios privados que surgiram posteriormente (2002/2003) seguiram as mesmas regras, com raras exceções que, por si só, não poderiam ter causado a enfermidade.
Além disso, o padrão da doença reforça que a densidade não foi o fator crítico. A síndrome começou em Imaruí e se espalhou para Laguna, atingindo fazendas com baixas densidades (15-20 cam/m²), incluindo a Fazenda Camaruí, onde tudo começou. Essa epidemia demonstrou que o problema não estava na gestão local, mas nas condições climáticas e ambientais da região, propícias para o vírus se instalar.
A disseminação da mancha branca caracterizou-se por um verdadeiro efeito dominó, que teve início em Imaruí e avançou rapidamente para Laguna. O detalhe mais importante: todas as fazendas atingidas apresentavam baixa densidade de camarões – TODAS, sem exceção, inclusive a Fazenda Camaruí (20 cam/m²), onde tudo começou.
Portanto, o problema não foi o número de fazendas no Complexo Lagunar Sul, tampouco a densidade do cultivo. Contesto veementemente essa ideia e desafio qualquer um que defenda o contrário! Se a densidade de estocagem ou a concentração de fazendas fossem os principais gatilhos, não haveria explicação plausível para o surgimento do vírus em outros locais, que em 2005 também afetou as poucas fazendas nos municípios de Rio Grande e São José do Norte, no extremo-Sul do Rio Grande do Sul, como a propriedade do lagunense Danilo Faria.
Entre 1998 e 2004, Laguna viveu uma situação peculiar, mesmo se comparada a outras regiões do Brasil e do mundo. A expansão da carcinicultura marinha foi rápida e parecia muito promissora. O modelo era eficiente: bastava construir uma fazenda e, em poucos meses, era possível realizar as primeiras despescas com alta rentabilidade. Tudo indicava que o sucesso era garantido – e foi, mas por um período curto.
Um fenômeno global
e o aprendizado de 20 anos
As doenças virais já vinham trazendo enormes prejuízos à carcinicultura global: a mancha branca começou na Ásia em 1992 e chegou à América Latina em 1998. No entanto, até aquele momento, o Brasil ainda não havia sido afetado.
Precisamos compreender que a culpa não foi de ninguém. Nossa região possui as condições climáticas e ambientais ideais para a proliferação do vírus, mas não para esta espécie de camarão! Não foi um erro humano ou uma falha de gestão. Estávamos apenas na região perfeita para o vírus prosperar. A faixa de temperatura ideal para o vírus da mancha branca está entre 25 e 28ºC na água, e é justamente essa a temperatura média das águas estuarinas em nosso verão, período em que criamos o camarão. Poucos lugares no mundo produzem ou tentaram criar o Litopenaeus vannamei em nossa latitude.
Estimado leitor do JL, você já parou para pensar que o salmão-do-Atlântico, tão apreciado pela gastronomia atualmente, necessita de águas frias para se desenvolver, como as do norte da Europa (Noruega) ou do extremo Sul do Chile? A temperatura ideal para os salmonídeos é semelhante à do interior de uma geladeira! Quer um exemplo mais próximo? As trutas cultivadas na região serrana catarinense, em locais como Urubici, onde as tilápias morreriam de frio, enquanto essas trutas não sobreviveriam ao calor do verão lagunense. Cada macaco no seu galho!
Então, foi uma má ideia fomentar a indústria da carcinicultura marinha no Sul do Brasil? Essa pergunta é a que tenho mais dificuldade de digerir/refletir. Foi sim uma boa ideia, mas globalmente a questão sanitária neste setor foi subestimada.
Mesmo após 20 anos, as doenças continuam sendo o principal desafio da carcinicultura global, enquanto outras cadeias, como a tilapicultura brasileira, prosperam. Hoje, o Brasil é o quarto maior produtor mundial de tilápia, e nossa piscicultura de água doce é considerada a mais tecnificada do mundo.
Por que, então, a criação de tilápias e salmões avança com sucesso, enquanto os camarões enfrentam tantas dificuldades? Uma explicação plausível é que os invertebrados, como os camarões, não possuem memória imunológica, o que torna impossível o uso de vacinas preventivas. Em contraste, grande parte das tilápias cultivadas no Brasil é vacinada, assim como os salmões criados em todo o mundo. No Chile, por exemplo, mais de 40 vacinas estão registradas nos órgãos de defesa sanitária animal, contribuindo para a estabilidade sanitária dessas espécies.
É como se enfrentássemos a pandemia da Covid-19 sem vacinas: os camarões dependem apenas de resistência genética (ou fenotípica) para sobreviver ao vírus da mancha branca. E para dificultar, ainda não podem usar máscaras ou álcool em gel…
Buscando soluções e o papel da UDESC
Diante desses desafios, a pesquisa científica nos últimos 15-20 anos focou no desenvolvimento de sistemas de cultivo mais biosseguros, como os bioflocos, que trabalham com exclusão viral. Embora promissores, esses sistemas enfrentam obstáculos devido ao custo elevado e à complexidade técnica para uso em larga escala.
Por outro lado, há exemplos notáveis de superação: o Nordeste brasileiro conseguiu reestruturar a produção (em parte, interiorizando-a), e o Equador levou apenas oito anos (1998-2006) para se recuperar. Hoje, o Equador é o líder mundial na produção de camarões, ultrapassando a China – a cada quatro camarões cultivados no mundo, um vem do Equador. Esse é um verdadeiro fenômeno da carcinicultura global, um exemplo de que a superação é possível.
Em Santa Catarina, houve tentativas (bastante inovadoras para a época!) de criar linhagens de camarões resistentes entre 2007 e 2011, mas faltou apoio governamental, e o esforço acabou se perdendo. Na época, com 27 anos, eu acreditava que esse era o caminho, e me dediquei ao desenvolvimento de uma linhagem resistente por cinco gerações, em parceria com produtores “sobreviventes” e técnicos brilhantes, no Laboratório Estaleirinho, em Balneário Camboriú. Porém, apesar do empenho, não conseguimos manter o material.
Passados 20 anos desta tragédia, hoje vislumbro dois caminhos para a carcinicultura marinha de Laguna e região: o desenvolvimento de uma população local, melhorada geneticamente e adaptada às nossas condições climáticas e ambientais ou a adoção de sistemas intensivos de cultivo – embora a viabilidade econômica seja um grande obstáculo.
A UDESC também desempenha um papel fundamental nesse cenário. Desde o início, temos trabalhado ao lado dos produtores e do setor produtivo, e juntos seguimos em busca de soluções. A exemplo da ação de extensão denominada “Grupo de Interesse em Carcinicultura da UDESC”.
Atualmente, estamos aguardando a abertura de um processo de licitação para o início das obras do novo Laboratório de Aquicultura e Biotecnologia Marinha da UDESC/Laguna. Um projeto que vem sendo “costurado” a várias mãos, desde 2019, quando nossos laboratórios de pesquisa tiveram que deixar o sambódromo municipal. Uma das apostas é a produção de uma linhagem local de camarões marinhos, resistentes aos desafios de nossa região.
Considerações finais
A aquicultura global enfrenta desafios severos com doenças virais, mas Laguna ainda possui o potencial de reerguer sua produção. Podemos não estar no ambiente ideal para o camarão, mas temos perseverança, conhecimento e uma história rica de aprendizado. Nossa trajetória mostra que, com pesquisa, inovação e resiliência, o setor da carcinicultura marinha de Laguna ainda pode resgatar sua relevância, afinal, estamos na terra, ou melhor, nas águas do “Camarão Laguna”, o melhor do mundo em termos de sabor e qualidade!
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