Outra tradição muito perversa foi a escravidão tão bem descrita por Jessé Souza em seu livro:”A elite do atraso:da escravidão à Lava-Jato”(2018). Cabe recordar que houve uma época, entre 1817-1818, em que mais da metade do Brasil era composta de escravos (50,6%). Hoje cerca de 60% possui algo em seu sangue de escravos afrodescendentes. São discriminados e postos nas periferias, humilhados a ponto de perderam a própria autoestima.
A escravidão foi internalizada na forma de discriminação e preconceito contra o negro que devia sempre servir, porque antes fazia tudo de graça e, imagina-se que deve continuar assim. Pois desta forma se tratam, em muitos casos, os empregados e empregadas domésticas ou os peões de fazendas. Uma madame da alta classe disse certa vez:”os pobres já recebem a bolsa-família e além disso creem que têm direitos”. Eis a mentalidade da Casa Grande.
As consequências destas duas tradições estão no inconsciente coletivo brasileiro em termos, não tanto de conflito de classe (que também existe) mas antes de conflitos de status social. Diz-se que o negro é preguiçoso quando sabemos que foi ele quem construiu quase tudo de nossas cidades históricas. O nordestino é ignorante, quando é um povo altamente criativo, desperto e trabalhador. Do nordeste nos vêm grandes escritores, poetas, atores e atrizes. Mas os preconceitos os castigam à inferioridade.
Todas essas contradições de nossa “cordialidade” apareceram nos twitters, facebooks e outras redes sociais. Somos seres demasiadamente contraditórios.
Acrescento ainda um argumento de ordem antropológico-filosófica para compreender a irrupção dos amores e ódios nesta campanha eleitoral. Trata-se da ambiguidade fontal da condição humana. Cada um possui a sua dimensão de luz e de sombra, de sim-bólica (que une) e de dia-bólica (que divide). Os modernos falam que somos simultaneamente dementes e sapientes (Morin), quer dizer, pessoas de racionalidade e bondade e ao mesmo tempo de irraconalidade e maldade.
Esta situação não é um defeito da criação mas uma característica da condition humaine. Cada um tem que saber equilibrar estas duas forças e dar primazia às dimensões de luz sobre as de sombras e de sapiente sobre as de demente.
Não devemos nem rir nem chorar, mas procurar entender como dizia Spinoza. Mas não é suficiente entender. Urge praticar formas civilizadas da “cordialidade” na qual predomine a vontade de cooperação em vista do bem comum, se respeitem as minorias e se acolham as diferentes opções políticas. O Brasil precisa se unir para que todos juntos enfrentemos os graves problemas internos, num projeto por todos assumido. Só assim se gesta o que se chamou o Brasil como a “Terra da boa Esperança”(Ignacy Sachs).
Não será o presidente eleito a pessoa da reconciliação nacional, pois ele, por seu estilo, é fator de divisão e criador de uma atmosfera social de violência e discriminação.