Perfil

Crisiane Nunes Bez Batti

O mês de setembro é marcado por diversos eventos da comunidade surda. Eles são voltados para a conscientização sobre a acessibilidade e a comemoração das conquistas obtidas ao longo dos anos.
Aos 41 anos, natural de Vacaria, no Rio Grande do Sul, Crisiane Nunes Bez Batti atua como professora bilíngue de surdos e conta aos leitores do JL um pouco mais de sua emocionante trajetória.
Mãe de Dérick, Clara e Isadora, a focalizada recorda que sua caminhada foi longa até ser identificada como surda sinalizante: “Acredito que é uma dificuldade também para muitos como eu, que levam tempo para serem diagnosticados como surdos. Minha família nunca teve uma definição certa de como me tornei surda. Até os 6 anos, me recordo que faziam inclusive simpatias para me “curar”, para que começasse a falar como todas as crianças da minha idade, mas isso nunca aconteceu. O processo de diagnóstico para surdez levou muito tempo”, explica.
Como não conseguia se comunicar, Crisiane lembra que se irritava com muita facilidade na escola e era constantemente castigada: “Passei por vários médicos que diziam para minha mãe que o que eu tinha era um problema psicológico e não surdez. Quando por fim eu fui diagnosticada como surda, já tardiamente, enfrentei o tratamento que a maioria dos surdos da minha idade já enfrentou – o treino oral – para aprender a falar. É um processo cansativo e difícil. Na escola, era duro não ter comunicação e ver que eu ficava para trás enquanto meus colegas iam para as outras séries. Sofria bullying todos os dias e me lembro dessa época com muita tristeza”.
Um dos grandes déficits nesse processo de crescer como uma criança surda tardiamente diagnosticada e sem input linguístico na Língua de Sinais é não entender os conceitos das coisas: “Alguns surdos, como eu, até aprendem a oralizar mas muitas vezes não entendem os conceitos e os significados daquilo que verbalizam. O aprendizado de uma língua que seja confortável – no caso dos surdos, a língua de sinais – é vital para o desenvolvimento em muitas áreas da vida. Durante esses anos de lacuna linguística, passei por sérios traumas, desde lutos a um aborto espontâneo, sem que eu pudesse mensurar tudo o que significava. É muito triste não ter acesso ao mundo e às informações por que te negaram uma língua”.
Foi no curso de Pedagogia que a gaúcha teve sua primeira disciplina de libras e seu primeiro contato com a língua e posteriormente, frequentando curso de Libras, na UFSC, que o universo linguístico se abriu: “ Quando aprendi a língua de sinais passei a entender muitas coisas que antes não entendia. Pude olhar para meu passado e dar novos significados às coisas que passei. Até hoje me pego conhecendo o significado de palavras que sei escrever e falar, mas que foi a Libras que pôde me esclarecer o sentido.Passei a militar pela causa surda em Laguna. Na época criamos a ALPAS – Associação de pais e amigos de surdos de Laguna e com essa experiência pude ter contato com muitos surdos que foram privados da Libras e tinham imensos problemas de comunicação, além de não conseguir acessar os serviços públicos básicos porque não tinham intérpretes. Essa vivência me prepararia para lutas maiores”.
Mestre em Linguística pela UFSC, com diversas especializações, Crisiane recebeu o convite de Karin Strobel, professora surda referência na área dos estudos surdos, para atuar na Diretoria de Politicas de Educação Bilíngue de Surdos/DIPEBS, em Brasília: “Foi um caminho novo, de muita responsabilidade e que não imaginava trilhar. Porém, quando a oportunidade de trabalhar na equipe me foi estendida, me senti não só honrada, mas também com a grande responsabilidade de difundir a Libras e a cultura surda. Para além disso, de trabalhar, para que nas escolas, os surdos tenham acesso à Libras o mais precocemente possível, para que não tenham experiências duras como a minha, privados do direito básico de exercer sua cidadania, de se comunicar e de acessar o mundo”.
De volta a Laguna, sua missão agora está focada na reformulação da estrutura pedagógica da educação de surdos do município: “Estamos trabalhando em vários projetos voltados para o fortalecimento de políticas bilíngues de surdos. Nossos projetos vão desde a implementação da escola bilíngue de Surdos onde a língua de sinais é a língua de comunicação, interação e expressão e o português escrito como segunda língua, como de parcerias para a criação de documentos norteadores como o grupo de trabalho para elaboração de Estrategia de alfabetização para Surdos e de cursos de formação inicial e continuada. Há muito trabalho a ser feito”.
Quando questionada sobre o comportamento da sociedade e conscientização, avalia: “A sociedade é muito capacitista. E ainda vê os surdos como pessoas a quem falta algo – a audição. Porém, não nos identificamos na falta. Somos pessoas que nos comunicamos através de uma outra língua. Se a sociedade se abrir para essa ideia nossa vida será muito mais fácil e muitas barreiras serão eliminadas. Hoje, depois de todas essas experiências, eu compreendo que a comunidade surda é fundamental na minha vida, pois me possibilita a construção do meu ideal de futuro, redefinindo minha voz e atitude em relação às dificuldades, desafios e obstáculos”.

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