Especialmente no judaísmo intertestamentário, esperava-se para os fins dos tempos a efusão do espírito sobre toda a criatura (Jl 2,28-32; At 2, 17-21). O Messias será “forte no espírito” e virá dotado de todos os dons do espírito (Is 11,1ss).
É nesse contexto do judaísmo tardio que surge a tendência de personificar o espírito. Ele continua sendo uma qualidade da natureza, do ser humano e de Deus. Mas sua ação na história é tão densa que começa a ganhar autonomia. Assim se diz, por exemplo, que “o espírito exorta, se aflige, grita, se alegra, consola, repousa sobre alguém, purifica, santifica e enche o universo”. Jamais se pensa nele como criatura, mas como algo do mundo de Deus que, quando se manifesta na vida e na história, tudo transforma.
O Espírito é Deus, Deus é Espírito
A compreensão começou a mudar quando se cunhou uma expressão decisiva: “espírito de santidade” ou “espírito santo”. Essa formulação guarda certa ambiguidade, pois pode-se dizer espírito santo para se evitar dizer o nome de Deus (coisa que os judeus até hoje, por respeito, evitam) como pode-se significar o próprio Deus. Para a mentalidade hebraica, “santo” é o nome por excelência de Deus, o que equivale dizer na compreensão grega: Deus como transcendente, distinto de todo e qualquer ser da criação.
Em resumo, podemos afirmar: pela palavra espírito (ruah) aplicado a Deus (Deus “tem” espírito, Deus envia o seu espírito, o espírito de Deus) os judeus expressavam a seguinte experiência: Deus não está atado a nada; irrompe onde quer; confunde planos humanos; mostra uma força à qual ninguém pode resistir; revela uma sabedoria que torna estultície todo o nosso saber. Assim, Deus se mostrou aos líderes políticos, aos profetas, aos sábios, ao povo, especialmente, em momentos de crise nacional (Jz 6,33; 11, 29; 1 Sam 11,6).
Assim como é dado ao rei para que governe com sabedoria e prudência, no caso o rei Davi (1 Sam 16,13), (oxalá o dê ao presidente anti-espírito que nos (des)governa) será dado também ao servo sofredor, destituído de toda pompa e gran-diloquência (Is 42,1). Em Is 61,1 diz-se explicitamente: “o espírito de Javé está sobre mim porque Javé me ungiu… para anunciar a libertação dos cativos e a boa-nova para os pobres”, texto que Jesus aplicará a si na sua primeira aparição na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 17-21). Por fim, o espírito de Deus não sinaliza apenas sua ação inovadora no mundo, mas aponta para o próprio ser de Deus. O espírito é Deus. E Deus é Espírito. Como Deus é santo, o Espírito será o Espírito Santo.
O Espírito Santo penetra tudo, abarca tudo, está para além de qualquer limitação. “Para onde irei para estar longe de teu Espírito? Para onde fugirei a fim de estar longe de tua fa-ce? Se eu escalar os céus, aí estás, se me colocar no abismo, também aí estás” (Sl 139,7) Até o mal não está fora de seu al-cance. Tudo o que tem a ver com mutação, ruptura, vida e novidade tem a ver com o espírito. O Espírito Santo está tão unido à história que ela de profana se transforma em história santa e sagrada.
O Espírito num mundo sem espírito e em degradação
Hoje sentimos a urgência da irrupção do Espírito Santo co-mo na primeira manhã da criação. A Carta da Terra, face à crise mundial ecológica, com energias negativas que nos podem arrastar ao abismo, afirma: “Como nunca antes da história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isso requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de res-ponsabilidade universal… Temos ainda muito a aprender a partir da busca conjunta por verdade e sabedoria (final)”]
O Papa Francisco diz igualmente em sua encíclica “sobre o cuidado da Casa Comum: “Nunca maltratamos e ferimos a Casa Comum como nos último dois séculos (n. 53). Se “não mudarmos nosso estilo de vida insustentável- continua- só poderemos desembocar nas catástrofes” (n.161).
Cabe ao Espírito iluminar nossa mente e transformar nosso coração. Se fizermos essa conversão, dificilmente escapare-mos das ameaças que pesam sobre o sistema-vida e sistema-Terra. Cabe ao Espírito a capacidade de transformar o caos destrutivo em caos criativo, como operou no primeiro mo-mento do Big Bang. Ele pode transformar a tragédia como a atual do Covid-19 numa crise acrisoladora que nos permite dar um salto de qualidade rumo a uma nova ordem, mais al-ta, mais humana, mas cordial, mais amorosa e mais espiri-tual. O universo, a Terra e cada um de nós somos templos do Espírito. Ele não permitirá que seja desmantelado e destruí-do. Esse pedido é urgente para a atual situação quando a Terra como um todo é atacada por um vírus letal que está di-zimando milhares de vidas.
Importa suplicar ao Espírito: Vem, Espírito Criador! Renove a face da Terra, aqueça nossos corações e rasgue um hori-zonte de sentido e de esperança para a nossa realidade hu-mana desumanizada e agora posta sob o risco de milhares desaparecerem vitimas da intrusão do Covid-19. A ciência, a técnica a vacina são fundamentais. Mas apenas com elas não está garantido que evitemos voltar ao que era antes. Para isso precisamos de outro espírito que dê centralidade ao que con-ta: a vida, a cooperação, a interdependência, a generosidade e o cuidado para com a natureza e para uns para outros. Se não fizermos esta viragem paradigmática, podemos ser ata-cados novamente e de forma ainda mais letal.