Dando aulas como professor visitante na Universidade de Heidelberg,onde Martin Heidegger, Max Weber e o próprio Karl Marx estudaram, um estudante muçulmano assistia meu curso sobre a Igreja na base, as assim chamadas comunidades de base. Relatei que num grande encontro,há anos, na cidade de Trindade, no estado de Goiás, havia um lema, escrito em letras garrafais logo na entrada do local do encontro: “A Santíssima Trindade é a melhor comunidade”.
Sabemos que os muçulmanos bem como os judeus professam um estrito monoteismo. Este estudante muçulmano me perguntou: “se eu disser que o Deus que está acima de nós e é nossa Fonte originária chamamos de Pai; e o Deus que está ao nosso lado e se mostra como nosso irmão chamamos de Filho; e o Deus que mora dentro de nós e se revela como entusiasmo chamamos de Espírito Santo, o Sr. acha que estou falando na Santíssima Trindade cristã”? Eu fiz uma pequena pausa, coloquei as mãos na barba e lhe disse: “no nível existencial, da experiência de um cristão, podemos dizer que isso é a Santíssima Trindade. E comentei: “a teologia não fala assim; usa expressões abstratas de uma única natureza ou substância, subsistindo em três Pessoas divinas, coisa que poucos entendem; mas você tem razão, pois o que vc diz todos podem entender”. Ao que ele respondeu: “eu como muçulmano aceito um Deus assim; ele não conflita com minha fé muçulmana”.
Celebramos no domingo, logo após a festa de Pentecostes, a festa da Santíssima Trindade, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Sobre esta doutrina trinitária se fizeram grandes elaborações teóricas e heresias condenadas. Tudo foi pensado no quadra da filosofia grega, de pessoa, substância, relação, pericórese (inter-retro-relação entre as divinas Pessoas) e outras. A reflexão ficou tão complicada que os cristãos, praticamente, não adoram a Santíssima Trindade, porque não a entendem.. Falam de Deus numa visão monoteísta. Mas assim perdemos a originalidade do pensamento cristão sobre Deus.
Na verdade, a intuição que está por detrás da afirmação de que Deus não é a solidão do Uno mas a Comunhão de Três Pessoas é afirmar que a natureza íntima de Deus é amor, comunhão, difusão, inclusão, interpenetração num no outro: um momento tão completo que faz com que Deus seja um Deus trinitário.
Quando os cristãos falam que Deus é Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo não estão somando números 1+1+1+1=3. Se houver número então Deus é um só e não Trindade. Mas aqui se afirma que há três Únicos. O único não é número por isso não pode ser somado. Mas ocorre que estes três Unicos se relacionam entre si tão absolutamente, se entrelaçam de forma tão íntima, se amam de maneira tão radical que se uni-ficam. Isto é, ficam um. Esta comunhão não é resultado das Pessoas que, uma vez constituídas em si e para si, começam a se relacionar. Não. A comunhão é simultânea, eterna e originária com as Pessoas. Elas são, desde todo sempre, Pessoas-comunhão, Pessoas-relação. Então há um só Deus-comunhão-relação-de-Pessoas.
Com a Trindade não queremos multiplicar Deus. O que queremos é expressar a experiência singular de que Deus é comunhão e não solidão, é amor que se difunde com outros amores que cria.
Pertinentemente escreveu o Papa Francisco em sua encíclica de ecologia integral Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum:
“O mundo foi criado pelas três Pessoas divinas… e este mundo criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações”(n.238).
Desta forma, ultrapassamos uma visão monoteísta e substancialista da divindade. A Trindade nos coloca no centro de uma visão de relações, de reciprocidades e inter-retro-comunhões bem no estilo do que se pensa na moderna cosmologia e na física quântica: tudo está relacionado com tudo e nada existe fora da relação. Deus-Trindade é a Matriz Relacional que subjaz e sustenta todas as relação, também as nossas na forma de simpatia, amizade e de amor. A comunhão é simultânea e originária com as Pessoas. Elas são, desde toda a eternidde, Pessoas-comunhão, Pessoas-relação., Pessoas-amor. Então há um só Deus-amor-comunhão-relação-de-Pessoas.
Santo Agostinho, o grande pensador desta visão de Deus-comunhão, escreveu no seu “De Trinitate”: “Cada uma das Pessoas divinas está em cada uma das outras e todas em cada uma e cada uma em todas e todas estão em todas e todas são somente um” (livro VI,10,20).
Então,numa linguagem direta, fundada mais na vivência de fé do que nas doutrinas, podemos acolher o pensamento de meu ouvinte muçulmano: o Deus que está acima de nós, fonte de onde tudo emana é o Pai. O Deus que está ao nosso lado caminhou conosco,foi amigo dos pobres é nosso irmão de sangue, chamamos de Filho. E o Deus que mora dentro de nós que nos sustenta no desamparo e nos dá sempre esperança e entusiasmo é o Espírito Santo. Eles são um só-Deus-comunhão-relação-amor.
Um Deus assim dá para aceitar, adorar e sentir-se envolvido em suas relações de amor.
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