Leonardo Boff

Como matar a saudade de Deus (1ª parte)

“Saudade” é intraduzível em outros idiomas. Por isso não é coisa que se define mas que se vive e se sofre. Descrevendo-a: é uma melancolia terna num misto de uma dor suave por um bem que foi vivido e que não volta mais, mas que docemente, retorna à memória: é o primeiro beijo da pessoa amada, é um olhar profundo de uma mulher que, numa plataforma de trem, encontrou no outro homem também um olhar penetrante revelando um amor imediato; o trem partiu e ela nunca mais foi encontrada; mas aquele olhar mútuo que foi ao fundo da alma, nunca mais pôde ser esquecido. Saudade é a experiência de, numa máxima concentração, ser tomado totalmente pelo Ser de Deus a ponto de não sentir mais o próprio corpo. Essa saudade é dolorosa quando não se consegue mais renová-la. Só deixou uma saudade infinita de suprema bem-aventurança. A saudade não deixa o passado ficar passado. Embora ausente, o torna presente, ficando apenas invisível.
Em nosso peregrinar pela vida, tudo o que de belo, realizador, impactante e profundo nos tocou, deixa um rastro de saudade. Uma criança cancerígena bem disse: saudade é o amor que fica quando tudo já passou.
A sociedade moderna tardia e letrada saturou a muitos, nem a todos, de bens materiais, os encheu de promessas vãs de felicidade e até lhes forjou um falso evangelho da prosperidade para o qual dão tempo, entusiasmo e os suados dinheiros como nas igrejas neopentecostais fundamentalistas, explorados por pastores que são verdadeiros lobos em pele de ovelhas. O mercado conscientemente os mantém ocupados por mil ofertas de consumo, de viagens, de experiências novas que os dificultam de encontrar-se consigo mesmo. Vive-se ut si Deus non daretur “como se Deus não existisse” ou tivesse sido borrado do horizonte da existência.
Mas nem tudo é manipulável no ser humano; há nele mistérios, cantos impenetráveis que guardam memórias e arquétipos ancestrais. Daí pode surgir uma saudade toda particular, a saudade de Deus, do Self que habita o profundo. Por séculos, conferia coesão à sociedade e oferecia um chão à existência humana.
Por razões muito complexas que não cabe aqui analisar, irrompeu o homem novo da modernidade. Ele dispensou Deus. Apresentou-se como um deus minor in terra, como “um deus menor na terra”. Sua experiência fundadora se definiu pela vontade potência, pelo poder exercido como dominação sobre os outros, sobre a mulher, sobre os povos, sobre a natureza, sobre a vida até sobre o espaço exterior. Assumiu tantas tarefas na nova conformação do mundo que, de repente, se deu conta de não poder mais realiza-las. O pequeno deus criou “o complexo Deus”. Já não tem mais forças, sente-se frágil, impotente, temeroso de si mesmo, pois criou uma máquina de morte que pode dar cabo a si mesmo por múltiplas formas diferentes. Fez guerras que só no século vinte, mataram 200 milhões de pessoas. Devastou a natureza que agora se volta contra ele com tufões, aquecimento global, aumento dos oceanos, escassez de bens e serviços sem os quais a vida não se sustenta.

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