Geral

Mar Grosso

(Impressões da Laguna)

Por Altino Flores

“São vinte minutos da cidade ao Mar Grosso esse passeio solitário e soberbo várias vezes o fiz, com o vagar e a volúpia de quem convalesce duma larga enfermidade.
Ainda ontem lá fui. Era de tarde e um sol rico, dum oiro carregado, dava ás franças do arvoredo tons aloirados. Havia fartas sombras aqui e além, sob os ramos das canemas, pessegueiros e laranjeiras marginais. De longe em longe as ramagens eram tão copadas que formavam dosseis sobre o caminho e a custo se podia entrever nos claros do seu entrelaçamento retalhos do céu azul. Folhas sêccas cahiam, farfalhando.
Subito, num torcicolo do caminho, desvendei lá em baixo o Mar Grosso e comecei a descer para as dunas.
O nordeste lufava áspero, quebrando o mar em vagalhões arquejantes, que se enrolavam de bojo enfumado, cresciam, grimpavam com íris d’espumas na crista e se precipitavam com fragor de batalha sobre a areia clara da praia, estendendo até longe o seu lençol alvinitente.
A praia é uma curva suave, muito aberta, tendo á direito o molhe, recto e longo, com seu esqueleto de traves negras, parecendo que fecha a barra, onde a ondulação da vaga, mesmo de longe, se torna mais visível: para adiante, é o pendor do morro do signal, semeado de pedras e tendo á ponta, lançada pelo mar dentro, uma laje côr de ferro, contra a qual os vagalhões do largo se esfarelam numa pulverização de espumas que vibra á luz e vai ao sabor do vento como nevoa de inverno.
Á extrema esquerda, são rochedos vermelhos em cujas fendas, erriçados, vegetam miseravelmente cardos e sarçais. Nas grandes arrebentações salpicos da maresia borrifam as folhas espatuladas e espinhosas das jurumbebas, erguidas com desassombro nas areias sôltas entre as fendas brutas. E, ás vezes nas arestas escarpadas do granito, cabritinhos com saltos electricos fazem maravilhas de acrobacia, pendidos quase a prumo sôbre o mar que rebenta lá em baixo.
Tão vasta é a praia, duma ponta á outra e da orla do oceano ás faldas verde do monte, que, mesmo com o mar ao pé, nos faz lembrar a árida desolação do Sahara.
De longe em longo a branca e faiscante monotonia das areias é quebrada por tufos de sarça e tojo, dum verde doentio, tostado das soalheiras inclementes.
Mais perto dos morros do que do mar estão os cômoros, revoltamente ennovelados e que o vento ora alisa, ora desfaz, de modo que no ar anda sempre uma subtil molinha de poeira, que vara a costura das roupas e adhere á pelle. É doce e é enfadonho caminhar sobre a maciez desse areal.
Por vezes, no ar azul, aves marinhas passam, em vôos boleados: ora gaivotas côr de algodão virgem, ora patos bravos dum tom de cobre.
Quando tornei á cidade, morria o sol para além dos montes, enquanto o mar, na sua cólera sollene, atroava os ares.
Na linha norte do horizonte, esfumada em neblina, fugia a silhueta longínqua dum vapor. (Laguna, 28/02/1915)”

No distante 28 de fevereiro de 1915, o josefense Altino Corsino da Silva Flores, ou simplesmente Altino Flores, que foi dono do jornal O ESTADO por mais de 20 anos e fundador e primeiro presidente da ACI-Associação Catarinense de Imprensa, escreveu esta verdadeira pérola sobre a nossa praia do Mar Grosso, que publicamos hoje, mantendo-a em sua integra, de 104 anos atrás. A lembrar que nascido em São José, em 4 de fevereiro de 1892, o “seo” Altino viveu toda a sua vida em Florianópolis, onde exerceu cargos públicos, foi professor, jornalista, tradutor e notável polemista literário. Morreu em 19 de outubro de 1983. Era casado com Zilda Callado, com quem teve cinco filhos: Percival, Ênio, Marília, Noemi e Zita. Além de Afrânio Boppré (vereador na capital), são seus netos o jornalista e escritor Sérgio Lino e Norton Boppré. Entre os bisnetos estão os jornalistas esportivos Carlos Eduardo (Cacau) Lino e André Lino.
Ligado à UDN (União Democrática Nacional), foi secretário dos governos de Irineu, Jorge Lacerda e Heriberto Hulse. Foi amigo e companheiro de política dos irmãos Adolfo e Victor Konder: o primeiro, governador do Estado entre 1926 e 1930, o segundo, deputado estadual entre 1919 e 1924.
Nos anos 1920 ele “herdou” o jornal O ESTADO, dos irmãos Konder, transformando o principal matutino de Florianópolis no mais importante de Santa Catarina. Foi dono do jornal até a década de 1940, quando numa manobra bem-sucedida do governador Aderbal Ramos da Silva, OE mudou de mãos, de linha editorial e orientação política( da UDN para o PSD, o Partido Social Democrático). Altino atuava como repórter, redator, editor e fotógrafo.Entre seus registros fotográficos constam cenas do cotidiano da capital, do comércio, do Miramar, das ruas históricas e do Mercado Público, e da vida nos morros. (Do arquivo de Carlos Augusto Baião da Rosa, com a colaboração do inteligente jornalista Carlos Damião, de grande atuação na imprensa catarinense, especialmente no querido Jornal O ESTADO e mais recentemente no Notícias do Dia).

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